04 novembro 2012

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Viagem Solitária, de João W. Nery

Autora: Daniela Andrade (texto também no facebook)
Se houvesse uma escala para medir abalos sísmicos internos no leitor que entra em contato com uma obra biográfica, com certeza “Viagem Solitária” de João W. Nery alcançaria a escala máxima. A obra traz logo em sua capa a impactante frase: “Memórias de um transexual trinta anos depois” e a foto do autor antes e depois da transição. Impactante pois a transexualida
de é, ainda hoje em dia, um assunto envolto por uma nuvem de ignorância, cientificismos ou dogmas.
Antes de lerem qualquer compêndio médico sobre a transexualidade, leiam “Viagem Solitária” e descubram o que é ser transexual não pelas palavras frias de quem faz o diagnóstico quase do impossível – já que, o gênero humano não é evidenciado pelos genitais, pelos cromossomos ou pelas taxas hormonais, mas pelo cérebro, esse órgão que ainda suscita curiosidades, dúvidas e erige e destrói tabus. Descubram a transexualidade pela ótica de quem sofreu todas as agruras e as violências que a vida impõe para os diferentes mas que as superou, o tempo todo, e a todo momento transmitiu uma lição de vida em cada passagem, frase ou opinião.
João Nery nos mostra um mundo não do absurdo, não do impossível – ainda que haja quem veja o assunto com os olhos da bizarrice, do grotesco, do sui-generis. Mas sim, um mundo pleno de sentimentos que afloram e comovem, que nos comprimem contra o mais íntimo de nós mesmos ao procurar em nosso âmago toda aquela dor, toda aquela tristeza, todas aquelas alegrias e a euforia que fez parte de absolutamente toda a vida desse grande homem.
Nessa viagem que fazemos lado a lado dessa pessoa – sim, com o passar das páginas mais e mais vamos construindo a consciência de que quem nos fala é uma pessoa, não uma personagem de tratado médico, de revista de curiosidades ou programa panfletário – vamos descobrindo sensações até então inauditas, irrepreensíveis, incomunicáveis: João Nery quer o tempo todo nos comunicar o indizível, quer nos demonstrar que o impossível esculpe em nós aquilo que nós queremos. E, talvez seja essa a única escolha: viver ou vegetar, ao usar a máscara que a sociedade a nós atrelou, mas que, por muitas vezes, apenas nos sufoca. E, João Nery preferiu viver. Que ótimo: vivemos junto com ele ao longo de toda sua biografia que não nos permite parar por um só instante sem querer saber o depois.
“Viagem Solitária” é a confissão e a luta de uma pessoa contra um homem – homem que nada mais é que essa própria pessoa. Porém, nessa luta entre ele e ele mesmo, há um vencedor conhecido, fatídico e, que pode nos arrancar lágrimas quando a certa altura da história o autor decreta a si mesmo:
“Sua luta é contra o impossível ou a impotência: portanto tenha claro que será sempre um perdedor. Virar homem, como você quer, não dá. Mas não se deixará morrer assim. Tem de ficar vivo, sadio, para poder usufruir os benefícios que a evolução da ciência lhe poderá proporcionar. Enquanto esse dia não chegar, poupe-se! Brinque com o seu defeito, com a sua inversão. Fale dele em voz alta. Desfaça o monstro! Quando o drama estiver insuportável, torne-se subitamente a plateia, para se ver atuando no palco. Verá a comédia que todo drama contém, como agora, e se fortalecerá. Não adianta mais ter ódio nem pena de si mesmo. Sobretudo, é preciso ter humor. Procure a essência do absurdo. Mas não se torne um alienado, antes, um inconformado. Se, num dado momento, a dor for insuportável, não racionalize a fim de obter a pseudotranquilidade. Consuma-se sem defesa até o fim. Esprema a dor e respire fundo.” (página 63)
Mas, a maior luta do autor, não é contra si mesmo, mas contra um mundo que por tantas vezes lhe negou humanidade e lhe apontou com regras, preâmbulos, ignomínias, reprovações. Um mundo feito de pessoas que dinstiguem o que é normal do que é anormal apenas por uma constatação visual, um mundo que não quer mais ouvir ninguém, que está muito apressado tentando montar todo um arcabouço de pensamentos e opiniões inflados em cima de tratados que estão o tempo todo mudando, pois nada dizem além daquilo que querem dizer: patologizar o diferente. Enquadrá-lo como alguém além do compreensível – não por sê-lo incompreensível, mas pela preguiça que se tem de tentar entender e se compenetrar na dor do outro, mesmo que o outro seja desafiador para tudo aquilo que até então tínhamos como certo.
“Viagem Solitária” é um convite ao desmoronamento do dualismo que nos diz o que é certo e errado ou, antes de tudo, é a recriação de tudo quanto achávamos errado, sem nos darmos conta de que estamos falando de seres humanos que existem apesar e além de nós.
O dito de Clarice Lispector bem se aplica a esse caso: “Renda-se como eu me rendi, mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei mas, não procure entender, viver ultrapassa todo entendimento”.
João Nery não só nos conta toda sua jornada de quem precisa enfrentar a família, a sociedade. De quem precisa enfrentar a ilegalidade e a vontade de estar o tempo todo recomeçando, deixando-se morrer e ressurgindo das próprias cinzas: Fênix que é. Recomeçar sua vida de professor universitário, psicólogo diplomado, de repente como lavrador, já que seus diplomas foram tornados inválidos pela mudança dos documentos. João é o espírito da garra enfrentando a própria morte ao se submeter à cirurgias extremamente invasivas, fazendo uso de hormônios com efeitos colaterais extremamente desagradáveis. Mas nós acompanhamos essa trajetória com a mesma euforia, o mesmo desespero que o acomete antes de tudo quanto ele almeja começa a acontecer. Parece até que somos nós, e não mais João, que estamos ali lutando e mostrando garra e a coragem, sem perder a ternura que mostrou-se intacta, de quem passou a observar o mundo de um prisma privilegiado – podemos até dizer que foi todo seu sofrimento e toda sua feminilidade que o transformou no grande homem que apresentou ser a todo tempo. João nos dá essa capacidade de também nos tornamos transgêneros, pela sua ótica, pela sua vida.
E, começamos a perceber o privilégio desse homem, que foi ter podido dizer sim para si mesmo e avançar, dando a cara para bater frente a um mundo que exige e cobra explicações de quem fere regras que estão sendo ditadas o tempo por bocas de quem está julgando, condenando, apontando e desaprovando.
“Viagem Solitária” nos dá vertigem frente à forma como o autor encara a mulher, as suas mulheres e a paternidade tão desejada. O muito que João tem a ensinar a todos os homens e a todos os pais, talvez, sem querer. Sem querer precisou aparecer um homem transgênero a fim de mostrar a todos nós o que é ser homem, e nos banhar nas águas do altruísmo, do amor e da luta por si mesmo, do amor e da luta pelo próximo e do caráter irretorquível, que nem todas as pedras conseguiram riscar, diamante que provou-se ser.
postado por Daniela Andrade em Daniela Andrade,Igualdade de Gêneros,Reflexões,Sexualidade

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