Viagem Solitária, de João W. Nery
Autora: Daniela Andrade (texto também no facebook)
Se
houvesse uma escala para medir abalos sísmicos internos no leitor que
entra em contato com uma obra biográfica, com certeza “Viagem Solitária”
de João W. Nery alcançaria a escala máxima. A obra traz logo em sua
capa a impactante frase: “Memórias de um transexual trinta anos depois” e
a foto do autor antes e depois da transição. Impactante pois a
transexualida
de é, ainda hoje em dia, um assunto envolto por uma nuvem de ignorância, cientificismos ou dogmas.
postado por Daniela Andrade em Daniela Andrade,Igualdade de Gêneros,Reflexões,Sexualidade

de é, ainda hoje em dia, um assunto envolto por uma nuvem de ignorância, cientificismos ou dogmas.
Antes de lerem qualquer compêndio médico
sobre a transexualidade, leiam “Viagem Solitária” e descubram o que é
ser transexual não pelas palavras frias de quem faz o diagnóstico quase
do impossível – já que, o gênero humano não é evidenciado pelos
genitais, pelos cromossomos ou pelas taxas hormonais, mas pelo cérebro,
esse órgão que ainda suscita curiosidades, dúvidas e erige e destrói
tabus. Descubram a transexualidade pela ótica de quem sofreu todas as
agruras e as violências que a vida impõe para os diferentes mas que as
superou, o tempo todo, e a todo momento transmitiu uma lição de vida em
cada passagem, frase ou opinião.
João Nery nos mostra um mundo não do
absurdo, não do impossível – ainda que haja quem veja o assunto com os
olhos da bizarrice, do grotesco, do sui-generis. Mas sim, um mundo pleno
de sentimentos que afloram e comovem, que nos comprimem contra o mais
íntimo de nós mesmos ao procurar em nosso âmago toda aquela dor, toda
aquela tristeza, todas aquelas alegrias e a euforia que fez parte de
absolutamente toda a vida desse grande homem.
Nessa viagem que fazemos lado a lado
dessa pessoa – sim, com o passar das páginas mais e mais vamos
construindo a consciência de que quem nos fala é uma pessoa, não uma
personagem de tratado médico, de revista de curiosidades ou programa
panfletário – vamos descobrindo sensações até então inauditas,
irrepreensíveis, incomunicáveis: João Nery quer o tempo todo nos
comunicar o indizível, quer nos demonstrar que o impossível esculpe em
nós aquilo que nós queremos. E, talvez seja essa a única escolha: viver
ou vegetar, ao usar a máscara que a sociedade a nós atrelou, mas que,
por muitas vezes, apenas nos sufoca. E, João Nery preferiu viver. Que
ótimo: vivemos junto com ele ao longo de toda sua biografia que não nos
permite parar por um só instante sem querer saber o depois.
“Viagem Solitária” é a confissão e a
luta de uma pessoa contra um homem – homem que nada mais é que essa
própria pessoa. Porém, nessa luta entre ele e ele mesmo, há um vencedor
conhecido, fatídico e, que pode nos arrancar lágrimas quando a certa
altura da história o autor decreta a si mesmo:
“Sua luta é contra o impossível ou a
impotência: portanto tenha claro que será sempre um perdedor. Virar
homem, como você quer, não dá. Mas não se deixará morrer assim. Tem de
ficar vivo, sadio, para poder usufruir os benefícios que a evolução da
ciência lhe poderá proporcionar. Enquanto esse dia não chegar, poupe-se!
Brinque com o seu defeito, com a sua inversão. Fale dele em voz alta.
Desfaça o monstro! Quando o drama estiver insuportável, torne-se
subitamente a plateia, para se ver atuando no palco. Verá a comédia que
todo drama contém, como agora, e se fortalecerá. Não adianta mais ter
ódio nem pena de si mesmo. Sobretudo, é preciso ter humor. Procure a
essência do absurdo. Mas não se torne um alienado, antes, um
inconformado. Se, num dado momento, a dor for insuportável, não
racionalize a fim de obter a pseudotranquilidade. Consuma-se sem defesa
até o fim. Esprema a dor e respire fundo.” (página 63)
Mas, a maior luta do autor, não é contra
si mesmo, mas contra um mundo que por tantas vezes lhe negou humanidade
e lhe apontou com regras, preâmbulos, ignomínias, reprovações. Um mundo
feito de pessoas que dinstiguem o que é normal do que é anormal apenas
por uma constatação visual, um mundo que não quer mais ouvir ninguém,
que está muito apressado tentando montar todo um arcabouço de
pensamentos e opiniões inflados em cima de tratados que estão o tempo
todo mudando, pois nada dizem além daquilo que querem dizer: patologizar
o diferente. Enquadrá-lo como alguém além do compreensível – não por
sê-lo incompreensível, mas pela preguiça que se tem de tentar entender e
se compenetrar na dor do outro, mesmo que o outro seja desafiador para
tudo aquilo que até então tínhamos como certo.
“Viagem Solitária” é um convite ao
desmoronamento do dualismo que nos diz o que é certo e errado ou, antes
de tudo, é a recriação de tudo quanto achávamos errado, sem nos darmos
conta de que estamos falando de seres humanos que existem apesar e além
de nós.
O dito de Clarice Lispector bem se
aplica a esse caso: “Renda-se como eu me rendi, mergulhe no que você não
conhece como eu mergulhei mas, não procure entender, viver ultrapassa
todo entendimento”.
João Nery não só nos conta toda sua
jornada de quem precisa enfrentar a família, a sociedade. De quem
precisa enfrentar a ilegalidade e a vontade de estar o tempo todo
recomeçando, deixando-se morrer e ressurgindo das próprias cinzas: Fênix
que é. Recomeçar sua vida de professor universitário, psicólogo
diplomado, de repente como lavrador, já que seus diplomas foram tornados
inválidos pela mudança dos documentos. João é o espírito da garra
enfrentando a própria morte ao se submeter à cirurgias extremamente
invasivas, fazendo uso de hormônios com efeitos colaterais extremamente
desagradáveis. Mas nós acompanhamos essa trajetória com a mesma euforia,
o mesmo desespero que o acomete antes de tudo quanto ele almeja começa a
acontecer. Parece até que somos nós, e não mais João, que estamos ali
lutando e mostrando garra e a coragem, sem perder a ternura que
mostrou-se intacta, de quem passou a observar o mundo de um prisma
privilegiado – podemos até dizer que foi todo seu sofrimento e toda sua
feminilidade que o transformou no grande homem que apresentou ser a todo
tempo. João nos dá essa capacidade de também nos tornamos transgêneros,
pela sua ótica, pela sua vida.
E, começamos a perceber o privilégio
desse homem, que foi ter podido dizer sim para si mesmo e avançar, dando
a cara para bater frente a um mundo que exige e cobra explicações de
quem fere regras que estão sendo ditadas o tempo por bocas de quem está
julgando, condenando, apontando e desaprovando.
“Viagem Solitária” nos dá vertigem
frente à forma como o autor encara a mulher, as suas mulheres e a
paternidade tão desejada. O muito que João tem a ensinar a todos os
homens e a todos os pais, talvez, sem querer. Sem querer precisou
aparecer um homem transgênero a fim de mostrar a todos nós o que é ser
homem, e nos banhar nas águas do altruísmo, do amor e da luta por si
mesmo, do amor e da luta pelo próximo e do caráter irretorquível, que
nem todas as pedras conseguiram riscar, diamante que provou-se ser.
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