Visibilidade Social, Transfobia e Educação Para a Diversidade

Vem daí a verdadeira obsessão de
“passar” – e de tornar-se cada vez mais passável – mote repetido à
exaustão ao longo da vida de uma pessoa transgênera. O paradoxo é que,
para tornar-se alguém “perfeitamente passável”, é preciso abdicar
inteiramente de qualquer visibilidade social como pessoa transgênera. A
pessoa deve diluir-se no contexto geral da sociedade, sem deixar à
mostra qualquer comportamento ou atributo que “chame a atenção” dos
demais, levando-os a colocar em dúvida a identidade de gênero com a qual
ela está se apresentando em público. Por regra, quanto menor a
visibilidade social como pessoa transgênera, maior a chance dela
“passar” como membro do gênero oposto. O outro não pode identificar
nenhum vestígio de transgeneridade na “farsa de gênero” que está sendo
perpetrada diante dos seus olhos…
Mas da mesma forma que pode ser ludibriado, o temido “olhar do
outro” também pode descobrir e denunciar qualquer coisa “fora de ordem”
na expressão de gênero de uma pessoa dentro do seu campo de visão. E
todos sabemos que não existe nada que mais se destaque em qualquer local
ou ambiente do que uma pessoa transgênera que não esteja conseguindo
“passar”. É exatamente para não ter que se submeter ao rígido e
implacável julgamento estético-político-cultural do “olhar do outro” que
a esmagadora maioria da população transgênera corre léguas de qualquer
tipo de visibilidade social, passando a vida inteira devidamente
trancada “no armário”.
Dessa forma, a mesma visibilidade social
que leva uma parcela de pessoas transgêneras à verdadeira obsessão de
“passarem incógnitas”, leva uma outra parcela, por sinal a maior de
todas dentro do mundo transgênero, a permanecer no armário por tempo
indeterminado, apavorada de não conseguir “enganar” o “olhar do outro”
numa eventual tentativa de expressar publicamente sua identidade
“oculta”.
Visibilidade social é, portanto, uma questão conflituosa e
problemática, tanto para as pessoas transgêneras que conseguem “passar”
perfeitamente no gênero oposto quanto para quem se julga incapaz de
conseguir tal “proeza cênica”. Assim, por causa da visibilidade social,
uns se esmeram o quanto podem na arte da transformação tentando
dissolver-se por completo na multidão, enquanto outros fazem de tudo
para se esconder, evitando sistematicamente qualquer forma de expressão
pública das suas identidades transgêneras.
Para que aumentar a visibilidade social
se, para passar, é preciso que a pessoa renuncie à sua identidade
transgênera, assumindo total e completamente a identidade do gênero que
pretende expressar?
A quem, afinal, interessaria um aumento
da “visibilidade das pessoas transgêneras” ou, dito de outra forma, a
redução drástica da sua “invisibilidade” social, se elas próprias são as
primeiras a fugir dessa visibilidade como o capeta corre da cruz?
Visibilidade (ou invisibilidade) social
não pode ser tomada, de maneira nenhuma, como núcleo representativo das
demandas transgêneras, como pretendem muitos grupos ativistas, focados
basicamente na negociação de políticas públicas capazes de atender a
população trans nas áreas de saúde, educação e emprego.
O que realmente afeta a vida das pessoas
transgêneras não é a sua visibilidade (ou invisibilidade) social, mas a
permanência e a predominância ostensiva e hegemônica do sistema binário
de gêneros. Essa é a verdadeira causa de todos os tormentos vividos
pela população transgênera, fonte inequívoca de preconceito,
intolerância, discriminação, exclusão e violência social, política,
econômica e psicológica que afligem tod@s aquel@s que se desviam do
modelo oficial masculino-feminino.
O sistema binário de gênero é que é o
verdadeiro mecanismo opressor, não a falta de visibilidade ou a
invisibilidade, voluntária ou compulsória que, infelizmente, foram se
convertendo em marcas registradas do comportamento transgênero. Somente
através do combate sistemático ao binarismo de gênero será possível
assegurar, a longo prazo, a maior visibilidade social para as pessoas
transgêneras que, finalmente, poderão manifestar livremente suas
expressões de gênero, e orgulhar-se delas, por mais discrepantes que
sejam dos estereótipos de homem e mulher vendidos pelo modelo oficial.
Em um mundo onde todos devem estar
necessariamente enquadrados em um e somente um dos dois gêneros oficiais
– masculino ou feminino – é um desafio pra lá de grande alguém
apresentar-se publicamente como pessoa transgênera, uma categoria que
nem existe oficialmente e que continua “abominável” . Apesar dos avanços
na aceitação da diversidade de gênero, ainda continua vivo o milenar
estigma sobre pessoas cujas expressões de gênero diferem do modelo
oficial. A transfobia é a mais grave manifestação da capacidade de ódio e
violência derivada desse estigma.
Manifesta-se na forma de discriminação,
segregação, intolerância, exclusão e violência – real ou simbólica – de
pessoas transgêneras, em casa e na rua, tanto nas sua relações
interpessoais e grupais (hostilidade em locais públicos, incompreensão
doméstica, isolamento no trabalho, etc), quanto na legitimação e
legalização de seus direitos (tratamento amplamente igual às perante as
instituições, legalização do direito da escolha do gênero no ato de
emissão de documentos oficiais, exercício pleno da liberdade de
expressão assegurada pela constituição, etc).
Muito arraigada e amplamente difundida
numa sociedade machista como a nossa, a transfobia pode aumentar muito
com o incentivo ao aumento da visibilidade transgênera, se essa maior
exposição pública não for precedida de um programa robusto voltado para a
educação da população para o respeito à diferença e à diversidade de
gênero. Esse sim, deve constituir o foco principal do nosso ativismo
trans.

Nenhum comentário:
Postar um comentário